Andrea Franulic
Traducción de Gabi Estamira.
“Para mim, como eu acredito na continuidade,
é difícil estabelecer onde termina o
‘passado’ e onde começa o ‘futuro’”
(Adrienne Rich).
Num desses fins de tarde, entre as nuvens cinzas do outono de Santiago, Margarita me lia o livro de Silvia Federici “Calibán e a bruxa”. Nos surpreendíamos: Federici tinha aprofundado sobre um silêncio.
Rich diz que a ordem patriarcal se mantém sobre uma base de muitos silêncios a respeito de nós -as mulheres- nossas relações, histórias, submissões e resistências. Um dos silêncios com maior peso civilizatório é a matança de mulheres dos séculos XVI e XVII. É um silêncio denso e, por isso mesmo, uma grande fonte de conhecimento para nós. Sua densidade e peso cobram dimensões civilizatórias, porque a caça de bruxas é a plataforma soterrada sobre a qual se ergue a época moderna.
Eu lia, Margarita lia e caía a tarde. O patriarcado é uma civilização que sempre esteve em guerra orquestrada contra as mulheres; provavelmente a guerra contra as bruxas (Federici) não tenha sido a primeira a ser catapultada da história oficial… me dizia eu. Eu tomava um gole de café amargo e continuava lendo.
A época moderna é história recente. Ela nos é contada nas escolas e nas universidades. Sua configuração inicial está relacionada a uma mudança de paradigma que afeta as ciências e a filosofia: é a época do racionalismo; o Homem tira Deus do centro. Além disso, durante este período, se conquista o “novo mundo”, e se levam a cabo transformações importantes na ordem econômica e política: se constituem os Estados-Nação, e o sistema feudal dá lugar ao sistema capitalista. Em relação à esfera religiosa, a época está marcada pelas negociações de poder entre a igreja católica e a igreja protestante. Todas essas mudanças, com algumas variações e contra respostas, se conservam até hoje.
Anoiteceu e acendemos umas velas pra continuar a leitura. Nossos olhos tinham esse brilho que combina a raiva e o pensamento. Com veemência, Margarita me dizia que, com esse vazio histórico profundo – com esse buraco negro no espaço – se entendia o porquê do árduo trabalho que temos feito as mulheres pra conhecermos a nós mesmas. Era certo. O silêncio sobre esse femicídio em grande escala é de um hermetismo assustador. Os corpos, as instituições e a ordem simbólica patriarcais confabulam para torturar e queimar as mulheres camponesas e curandeiras durante séculos, e logo organizam o ocultamento dessa ação:
– As igrejas reformulam a invenção ideológica do diabo e consolidam o serviço secreto do confessionário (Pisano).
– O Estado constitui o Tribunal da Inquisição com um novo livro sagrado (Pisano) que é “O martelo das bruxas. Para golpear as bruxas e suas heresias com poderosa clava” (Malleus Maleficarum) de Kramer y Sprenger, onde se especificam – de maneira detalhada – técnicas, mecanismos e instrumentos de tortura e vexação sexual.
– A ciência médica rouba os conhecimentos das mulheres, por meio de força (Federici), e os institucionaliza em suas universidades, nas quais é proibida sua entrada.
– A filosofia argumenta e justifica – sob a luz da Razão renascentista e logo iluminista – o grande massacre.
– A literatura e a mitologia criam o personagem da Bruxa e o embalam, no século XIX, nos contos infantis para doutrinar as meninas(os) para a misoginia e, além disso, encobrir os feitos históricos sob o manto da ficção. Esta operação também se realiza nos inícios da civilização patriarcal mediante o mito de origem do mundo, recriado em todas as religiões (Sendón de León).
– O capitalismo para se estabelecer no “velho e novo continente” precisa ter sob seu controle o ventre das mulheres; para isso, torturar e matar as curandeiras e roubar seus conhecimentos sobre seus próprios corpos sexuados – menstruação, contracepção, parto e aborto – se torna indispensável.
– A historiografia colabora de maneira protagônica no silenciamento em todo relato que apresenta sobre a modernidade, seu princípio e desenvolvimento. A historiografia latinoamericanista oculta que Colombo chegou ao “novo continente” com a Inquisição debaixo do braço.
Assim, cada um dos poderes patriarcais, inter-relacionados e conformados por corpos de homens, trabalha nessa missão femicida em que se assenta a grande época moderna que tanto os orgulha. Federici menciona os nomes de alguns dos “grandes homens” que argumentam a favor da matança: Bacon, Kepler, Galileu, Shakespeare, Pascal, Descartes.
Como tudo no patriarcado, os filósofos, escritores, cientistas, estadistas, juízes e intelectuais não são casos excepcionais e isolados – como se faz parecer nossa história de mulheres (Rich). Os “grandes homens” formam parte de uma tradição de pensamento; portanto, a justificativa misógina que eles sustentam conta com a cumplicidade de todos, porque a tradição consiste na legitimação de uns por outros mediante a citação textual, a conservação da linguagem dos “eleitos” e a configuração hierárquica das disciplinas. Lonzi cuspiu em Hegel; no entanto, é necessário cuspir em toda a tradição de pensamento patriarcal.
Ao Renascimento se segue o Século das Luzes, e encontramos os Homens como donos da Razão. Em 1789, mandaram para a guilhotina as revolucionárias que ousaram considerar-se seres políticas e pensantes. O diálogo entre estas e as bruxas foi cortado e não o herdamos. Mas herdamos todos os misóginos: Shakespeare continua sendo reproduzido nos teatros e no cinema. Os irmãos Grimm seguem vigentes em Walt Disney.
O método cartesiano continua sendo válido na filosofia e nas ciências. Marx analisa o capitalismo sem se pronunciar sobre a caça às bruxas levada a cabo para que este sistema econômico se consolidasse. Foucault estuda os séculos XVII, XVIII e XIX e mantém um silêncio ensurdecedor, diz Federici, sobre a queima de mulheres e sobre a câmara de tortura de onde os gritos de dor das mulheres vociferam um “discurso da sexualidade”. Desde outra frente patriarcal, Chomsky, legitimado pela ciência lingüística, inventa o Gerativismo e se inspira em Descartes, porque o sujeito lingüístico chomskiano é o sujeito cartesiano.
Um longo etcétera de uma longa tradição masculina que é cúmplice de silenciar a guerra perpétua contra as mulheres (Pisano).
As velas se consumiram.
2013