O negro Manuel Antonio hoje crê que é mordomo, mas tudo não passou de sonho.
E quando coloca o traje que lhe deu seu patrão, sonha que já não é de escravo…
(Nicomedes Santa Cruz)
Este escrito parte de minha experiência e habita as palavras políticas de Margarita Pisano(1), com as quais me comprometo plenamente. Se baseia no que falei na IIIª Escuela Feminista (2001) organizada, então, pelo Movimiento de Mujeres Feministas Autónomas de Chile; hoje, Movimiento Rebelde del Afuera.
Lá falei de misoginia, porque acredito que é fundamental que a gente a entenda, uma vez que ela atravessa todos os espaços de nossas vidas: o íntimo, o privado e o público, nos impedindo de viver bem… me impedindo de viver bem. Misoginia é o ódio e o medo profundos das mulheres; a palavra vem do grego misogynes que quer dizer “eu odeio as mulheres”. É o motor da feminilidade (2), que a faz girar sobre si mesma, gerando amor-admiração aos homens e seu sistema, e desprezo-invisibilidade às mulheres. Em termos literários, é seu leitmotiv (seu fio condutor).
Há vários séculos, habitamos uma cultura misógina: pensada, criada, organizada e executada pelos homens, devido a sabe-se lá que terror masculino ancestral de um corpo que sangrava a cada ciclo e tinha a capacidade de parir. Não vou me referir à origem desta cultura patriarcal e misógina, mas quero sim apontar que compartilho da hipótese da existência prévia de civilizações mais humanas e vitais presididas por conselhos de mulheres. Hoje em dia, nós mulheres continuamos manifestando nossa servidão aos homens e ao seu sistema ao reproduzirmos relações misóginas entre nós. São armadilhas da masculinidade que desfiguram os verdadeiros responsáveis e nos transformam em suas cúmplices, se não mesmo em culpadas.
Para evitar estas armadilhas, conhecê-las e nos curarmos delas, quero iniciar a análise e uma possível desconstrução da misoginia entre mulheres. E porque também penso que – partindo de nós – é possível inventar uma civilização mais humana e relações mais dignas e felizes se conseguirmos nos relacionar sem misoginia, ou seja, se conseguirmos sair da feminilidade e, portanto, da masculinidade. Em outras palavras, se deixarmos de servir material, emocional e ideologicamente ao sistema. Mas como?
Em primeiro lugar, um pouco de farinha peneirada e umas duas colherinhas de açúcar. Em segundo lugar, entender que não existem fórmulas nem receitas dadas; mas sim, uma experiência entre mulheres que se conhece, compreende, analisa, interpreta, estuda, compartilha, conversa, converge, diverge, emociona, projeta, identifica, reconhece e assim por diante. E não me refiro a uma experiência de cumplicidades “femininas”, mas a experiências-conhecimentos-sabedorias de mulheres que se atreveram a pensar de Fora (Afuera) do sistema.
Esta experiência é a que tem servido pra mim pra ir descolonizando meu olhar e pra poder ver tudo aquilo que a nós mulheres nos foi negado e roubado, o que nos mantém presas; ver, por exemplo, que meu corpo de mulher, empurrado ao silêncio, estava traspassado de olhares alheios, que lhe tinham dito como se mover, como se vestir, como sentir, como falar e como calar, como seduzir e como pensar; em que acreditar e valorizar, com quem e como se erotizar; o que temer, como amar… Um corpo que, em definitivo, devia viver em função-projeção de outros-espelhos, e não de si mesma. Por que, então, ia gostar de mim mesma?
Esta vida emprestada tem marcado tanto as mulheres que elas quase carecem (carecemos) de amor próprio. O amor próprio tem a ver com a vontade de pensar um projeto de vida e de humanidade próprios; tem a ver com ser uma pessoa. É uma ética distinta, não pré-fixada pelas leis de Zeus. E se não se ama a si mesma DE VERDADE, além do ego (que, às vezes, funciona como armadura para inseguranças, medos e complexos), é muito fácil desprezar – ou proteger, que é a outra cara do desprezo – as outras. A misoginia se aprende e quem te ensina é outra mulher.
O sistema patriarcal masculinista é tão eficiente que domina por meio de seus escravos; esta eficiência lhe tem custado muito sangue, é certo. Seus escravos mais efetivos foram e são as mulheres, aquelas que transmitem a regra de submissão/admiração aos homens e a seu modelo de sociedade. A mãe, com suas palavras e silêncios, valoriza a obediência que se espera de nós. O silêncio é um lugar historicamente feminino e muito violento; nos educam por meio e por dentro dele. É a arma do oprimido, um rabo de escorpião que envenena a alma: porque se não me expresso, meu corpo adoece e morre reprimido.
As mães são as primeiras mulheres com quem nos relacionamos na vida e elas nos traem ao exigir de nós – às vezes muito ambiguamente, pois também lançam dardos de rebeldias – que suportemos as mesmas desgraças que elas suportaram. Esta traição fundamental contribui para a lição de não amar as mulheres e continua COM MUITA FORÇA E INSISTÊNCIA nas palavras da professora e da tia; logo, nas das amigas e, rapidamente, nas próprias palavras.
As relações misóginas entre mulheres podem tomar várias formas, explícitas ou não, desde a inveja e a competição, veladas ou manifestadas abertamente, até o amor mais fervoroso ou protetor. Esta desqualificação pode usar, inclusive, o disfarce da piada; dá no mesmo. Qualquer dessas expressões é funcional ao sistema e justifica a misoginia independente dos argumentos.
A inveja entre mulheres tem sido representada nos mitos patriarcais e nos contos de fadas que deles derivam; desta maneira, as imagens que as mulheres fazem dos homens tem se cristalizado como algo sagrado e intocável, o que reafirma os modelos construídos na realidade. A inveja entre mulheres gira, geralmente, em torno do reconhecimento sexual ou intelectual de um homem (ou de uma mulher) que escolhe. A escolhida entre todas é uma exceção entre as escravas… a mais obediente. Como diz Adrienne Rich: “…a obediente filha do papai que existe em nós é somente uma burra de carga.”(3) Esta inveja consegue invisibilizar as ideias daquelas a quem não lhes interessa serem “as escolhidas”.
Por outro lado, as proteções ajudistas(4) entre mulheres deixam intacto o sistema de dominação a que estamos sujeitas. Uma mulher que protege outra mulher estende a ideia de sua própria fraqueza às demais, ou seja, se protege a si mesma e, neste ninho de insegurança e sofrimento, nada muda; pelo contrário, dá poder e, no fundo, mostra admiração àqueles que controlam através do medo. Este sistema legitima as relações protetoras-traidoras entre mulheres, porque nelas as mulheres não se reconhecem como iguais-pensantes, mas como mães, cuja única função é amar sem ter amor próprio.
O que não é funcional e joga terra nos sistemas de poderes masculinos é que nós mulheres PENSEMOS JUNTAS, fora de suas lógicas e condicionamentos. Para nós mesmas e não para eles. Para analisar e desconstruir o sistema existente. Estamos dispostas a crer em nossas capacidades humanas e a legitimar nossas ideias rebeldes, aquelas que não apelam ao senso comum instalado? Estamos dispostas a romper as correntes que nos prendem a este “conto de fadas”? Porque se não fizermos isso, continuaremos repetindo as relações culturais de domínio/submissão que corroem nossas dignidades, as remendando com falsas proteções, nos enganando e semeando a desconfiança entre nós.
Santiago, outubro de 2003
NOTAS:
(1) Arquiteta, pensadora e crítica da cultura vigente. Fundadora da Morada e de La Radio Tierra. E, ainda, do Movimiento Feminista Autónomo e do Movimiento Rebelde del Afuera. Publicou três livros e diversos artigos e ensaios.
(2) Entendo feminilidade como uma construção cultural pensada a partir da masculinidade e contida nela. Ver: El triunfo de la masculinidad, Margarita Pisano, 2000, Ed. Surada, Santiago de Chile.
(3) Sobre mentiras, secretos y silencios.
(4) “Uma das maneiras mais comuns (e também mais aceitas) de não respeitar uma pessoa – a experiência de uma pessoa – é correr em sua ajuda quando se sente ‘mal’ ou incomoda”, do livro Darse cuenta (Tornar-se presente – em português) de John O. Stevens.